A Boa Filha a casa torna

Escrito por Marti Noxon
Dirigido por Jean Marc-Valleé

A chamada em si já serve para trazer metade de seu público, o produtor de “Corra”, a escritora de “Garota Exemplar” e o diretor de “Big Little Lies” trabalham na minissérie dramática da HBO estrelada pela cinco vezes indicada ao Oscar, Amy Adams. Acredito que não preciso ir muito longe para divulgar o veredito sobre a qualidade dessa estreia. Baseado no livro “Objetos Cortantes” de Gillian Flynn, escritora do sucesso “Garota Exemplar”, a minissérie conta com oito episódios estreantes todos os domingos na HBO que também está disponível no serviço de streaming da emissora.

Sharp Objects” é sobre o passado, sobre os acontecimentos que nos moldam e nos criam como seres na ampla sociedade atual, mas principalmente, majoritariamente, nos eventos ruins, nos traumas, pesadelos, terrores, que afetam tanto a ponto de alterar completamente um, e criar uma grossa casca sobre um que antes demonstrava total humanidade. É uma análise sobre como nossos horrores nos tiram traços e nos deixam cada vez mais anestesiados perante ao mundo e jogados na sarjeta da vida.

Camille Preaker é uma jornalista na cidade de Saint Louis e que após eventos marcantes de seu passado consegue um trabalho estável, e supostamente, estabiliza sua vida. Em meio a seu dia-a-dia regado a litros e mais litros de álcool e inúmeras carteiras de cigarro, Camille trabalha como redatora encarregada de executar as mais diversas matérias no jornal onde trabalha. Ela executa sua profissão com o que já foi uma maestria e que hoje pode ser visto com preguiça. Quando seu chefe a designa para um trabalho em sua cidade natal, a pacata e pequena Wind Gap, a mesma precisa entrar na “toca do coelho” e retornar a seu passado que tanto luta para esquecer.

Ao chegar a cidade, que continua a mesma, a jornalista se depara com uma população dedicada a ajudar no caso ao qual foi designada, o assassinato de uma menina e o desaparecimento de outra em menos de seis meses de distância um do outro, o que poderia ser o trabalho de um serial killer e consequentemente, uma bela de uma manchete que traria toda a atenção para a cidade e para o jornal.

O retorno à terra natal não vem de forma simpática. Ali Camille viveu sua infância, adolescência e início de sua vida adulta, ali seus traumas foram formados, seus pesadelos se tornaram reais, e a jovem que um dia foi, acabou por ser destruída. Ela se hospeda em um motel de estrada e ali inicia sua reportagem, sua investigação, e após participar de uma das buscas pela jovem desaparecida, ela decide por retornar a casa de sua mãe, onde viveu toda a vida, e tentar refazer os laços com sua matriarca.

Adora Preaker é a mãe perfeita, loira, jovial, esbelta e com um manequim padronizado, ela desfila por sua mansão colonial nas mais perfeitas roupas e ouve música clássica a noite enquanto toma drinks caros com seu marido. Sua vida como mãe foi complicada, dando à luz a três mulheres, nos dias atuais ela se encontra com apenas duas a sua volta, tendo perdido sua filha do meio Mariam por uma doença até então desconhecida.

Herdeira de uma fortuna e de um negócio lucrativo na cidade conhecida pelos abates suínos, Adora é uma mulher seria, restrita e muito dura com aqueles a sua volta, ela é confiante e criou suas filhas da forma mais exigente possível. Após perder sua filha favorita, Mariam, ela se tornou ainda mais fria e afastada de suas outras filhas, sendo Camille uma delas. Os recentes acontecimentos de Wind Gap a fazem muito mal, visto ela também ter perdido uma filha e agora ver uma tragédia se repetindo de forma tão cruel. E ver que sua filha está disposta a “lucrar” com isso torna tudo ainda mais complicado e sádico.

Após um reencontro um tanto quanto sinistro entre as duas, e que não poderia ser elevado com mais frieza visto o comportamento de ambas, Camille volta a sua reportagem e acompanhamento das investigações. Ela entrevista o pai de Ann Nash, que foi assassinada no ano anterior após ter sido sequestrada, tentando montar peças desse complicado quebra-cabeça, mas sem respostas, apenas hostilidades e dúvidas sobre quem poderia ter cometido esses crimes.

Ao andar na rua um dia ela ouve gritos e choros, uma mulher em um beco rezando o mais alto possível em um tom choroso enquanto ajoelhada no chão e é consolada por um homem ao seu lado, ela grita, muito, Camille se dirige ao local, e sentado em uma janela se encontra o corpo de Natalie Keene, morto em um quase estado de decomposição, ela sem vida está vestida com suas roupas normais e parece mais estar descansando. O descobrimento do corpo de Natalie movimenta ainda mais a cidade, e as analises se iniciarão, em busca de provas de uma possível conexão com o assassinato de Ann Nash, que foi estrangulada até a morte, e que não sofreu qualquer tipo de abuso sexual.

Camille se encontra nesse cenário, caótico, quente, deprimente e que a traz as piores de suas lembranças, ali mesmo onde sua irmã morreu anos atrás, mais uma jovem criança vai a óbito, seu passado se repete, a vida reinicia seu curso e ela se vê a mercê de todos esses acontecimentos. Nada mais a resta a não ser ir a um bar mais próximo e afogar suas mágoas, mais conversas com os envolvidos não conseguem preencher seu vazio, e muito menos sanar suas dúvidas, o investigador “forasteiro” demonstra potencial de ser uma peça chave de toda a trama da série. Sua noite termina com um quente banho de banheira, em volta de velas, e é como se a palavra desaparecimento fosse escrita ao longo de seu braço, tudo se mostra disponível ao entendimento, mas ao mesmo tempo, nada pode ser encaixado.

O primeiro episódio de “Sharp Objects” inicia essa jornada e já demonstra o que vai ser mostrado, uma série e eventos obscuros e que estão todos apontados a alterar ainda mais a vida de Camille Preaker. Aqui foi possível entender a história da temporada e já montar certas peças a ponto de entender o cenário.

O passado se monta de pouco em pouco e nessas pequenas partes é possível ver o quão complicada foi a vida da jornalista em Wind Gap, mas ainda não foi possível entender como ela se tornou esse ser tão amargurado, mas certas dicas são jogadas a quem assiste, a relação com sua mãe, a morte de sua irmã, e a uma juventude que parece ter sido complicada. Ainda há muito tempo para mais descobrimentos e revelações, mas até o momento já foi mais que o necessário perceber que essa vai ser uma viagem um tanto quanto complicada.

O roteiro de Marti Noxon consegue trazer o mistério e o suspense necessários para uma obra como essa, os diálogos são poucos, mas pontuais, se monta a história e as tramas através dos aspectos visuais, a verbalização do episódio é apenas um elemento de ritmo, um meio de amarrar tudo o que se vê. A composição das personagens é assustadoras, são pessoas complicadas, e principalmente mulheres, colocadas a suas limites pela vida e que se encontram em um local de raiva, desespero e cansaço, e isso se torna visível nesses retratos, são mulheres machucadas por tudo a sua volta e que escolheram a frieza como forma de defesa.

E dentro dessa composição de personagem entra a interpretação como meio principal dessa análise, Amy Adams brilha no que pode acabar por ser considerada a melhor atuação de sua carreira. A Camille Preaker da atriz é real, é triste, rancorosa, machucada, raivosa, cansada e se vê a quão elevada a seu limite ela é, sua composição é quase que sádica, depois de tanto sofrimento parece que a mesma vai atrás disso como forma de não fugir de quem se tornou, de não perder essa anestesia onde ela se encontra. Isso tudo se vê no olhar de Adams, que melancólico, olha a todos os lados com cansaço, que se abstém da fala quando não a convém, que é quieta mas que fala tudo em seu silêncio e que chega a machucar de se observar visto sua infelicidade, suas feições, olhares, seu andar e fala gritam enquanto não emitindo sequer um som.

A jovem Sophia Lillis interpreta Camille em sua infância e adolescência e consegue montar através de curtas cenas um retrato que se vê finalizado em Adams de quem foi essa mulher e o que a transformou nisso, além da absurda semelhança entre as duas atrizes, a interpretação das mesmas se completa, uma grande composição de personagem feita em conjunto em prol da narrativa. Patricia Clarkson brilha em seus poucos momentos como Adora mas já traz muito da composição de sua personagem, se torna possível ver quem é ela e o que está disposta a fazer ao longo da série.

Com uma direção pontual e visualmente reveladora ao mesmo tempo que ocultadora, um roteiro bem escrito e montado e atuações maravilhosas. “Sharp Objects” inicia sua jornada da melhor forma possível e eleva cada vez mais o patamar das produções de sua emissora. Um episódio ótimo e que traz muita curiosidade perante ao futuro que está por vir. Que venha mais Camille Preaker.

 

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